Autor: Leonidas Martin
Tradução: Alexandre de A. Mourão
Nota do tradutor: O seguinte texto é apenas um pequeno recorte de um artigo publicado pelo doutor de Belas Artes e professor de políticas artísticas na Universidade de Barcelona, Leonidas Martin. Há mais de 20 anos, Leonidas, junto a diversos outros movimentos sociais, artistas e coletivos criou diversas iniciativas de ativismo criativo que marcaram a relação entre a arte e a ação política, desde a época dos chamados movimentos antiglobalização, como o Yomango, New Kids on the Black Block, Prêt-à-révolter, V de Vivienda, entre outros. Durante a entrevista que fizemos a ele, no dia 2 de fevereiro de 2021, descobrimos um ponto em comum: fizemos parte de uma mesma organização autônoma internacional, o Indymedia (Centro de Mídia Independente), surgida também no contexto das lutas anticapitalistas. Fizemos questão de trazer o Leonidas para nosso livro também pela experiência de atuação dele no Enmedio, um grupo de profissionais da imagem (desenhistas, fotógrafos, cineastas, artistas) que, insatisfeitos pela falta de conexão entre arte e ação política, decidiram abandonar os seus terrenos habituais de trabalhos e se situar enmedio (no meio), em nenhum lugar e em todos de uma vez. A partir dessa posição exploram a potência transformadora das imagens e relatos.
O grande estouro
Em novembro de 1999, apenas um mês antes do final do século XX, Seattle aconteceu. Foi um evento que pegou todos de surpresa. No final da história, uma multidão de jovens adornados com tambores e máscaras de gás conseguiu virar a cúpula anual da Organização Mundial do Comércio de cabeça para baixo. Se me dissessem isso um dia antes, eu não teria acreditado. Tal coisa não poderia acontecer em um mundo que parecia ter parado de girar. O mundo era então tipo um cara gorducho acomodado em um sofá com um sorriso de orelha a orelha que não deixava de devorar pastelzinhos enquanto cantarolava: “Eu sou assim, e assim eu vou continuar. Eu nunca vou mudar”. E, de repente, as imagens daqueles caras sentados no meio da rua e gritando: “Outro Mundo é Possível”. Essa aparição nas telas ao redor do mundo de uma vez foi como uma poção mágica que, de golpe e porrada, quebrou o feitiço que nos mantiam jovens, mas frios.
Quando aquilo aconteceu já havíamos sofrido, por algumas décadas ou mais, com as políticas da globalização neoliberal. Muitas das proteções sociais que conhecíamos estavam sendo destruídas; havia se iniciado um desenvolvimento deliberado de precariedade maciça e também um endividamento generalizado, tanto de estudantes para pagar os estudos quanto de famílias para enfrentar a hipoteca da casa. Eram tempos em que tudo tomava forma de empresa: governos, instituições e também pessoas que, aos poucos, tornavam-se uma espécie de empresa delas mesmas movida unicamente pela busca de benefícios econômicos. No meio daquele mundo entendido apenas como um conjunto de oportunidades lucrativas, em meio à total capitalização da vida, é onde estouraram as imagens de Seattle.
Aqueles garotos e garotas de braços dados nos portões do centro onde aconteceria a reunião da Organização Mundial do Comércio, e aqueles policiais-robocop pulverizando as caras dos manifestantes com gás de pimenta trouxeram a política e o ativismo social novamente à tona. De repente, todos queriam fazer parte daquela novidade que acabava de surgir, inclusive os museus de arte contemporânea, é claro. Se um museu de arte medieval fica desatualizado e para de acompanhar a atualidade, nada acontece, afinal é um museu medieval. No entanto, se o mesmo acontece com um museu de arte contemporânea, ele automaticamente deixa de ser contemporâneo, e isso é um grande problema. Assim, poucos meses após os acontecimentos em Seattle, a direção do MACBA (Museu de Arte Contemporânea de Barcelona) contatou o La Fiambrera Obrera para propor a coordenação de um encontro sobre arte e novos movimentos sociais, “como os de Seattle”.
La Fiambrera Obrera foi um grupo de quatro artistas: Santi Barber, Curro Aix, Xelo Bosch e Jordi Claramonte que, durante a segunda metade dos anos 90, realizaram uma série de performances e intervenções urbanas de recorte político. Experimentos estéticos que buscaram por todos os meios ser socialmente eficazes. O que o museu lhes propôs foi mais ou menos o que qualquer museu costuma oferecer: a organização de um seminário de dois ou três dias em que alguns palestrantes internacionais falariam sobre a nova paisagem política que parecia inaugurada após os protestos de Seattle e a relação que tudo aquilo tinha com as artes.
Por motivos pessoais, Santi, Curro e Xelo não puderam comparecer à proposta como gostariam. Mas Jordi aceitou, com algumas condições: a primeira, que os convidados ficassem um pouco mais em Barcelona e pudessem ter um espaço onde pudessem desenvolver e compartilhar as ideias que surgissem com os participantes da oficina. Segunda condição: que a oficina fosse gratuita para todos que quisessem participar. Depois de algumas negociações difíceis com a equipe do museu, ele finalmente conseguiu a proposta dele, e foi aí que eu entrei em cena com algumas outras pessoas. Pessoas como Marta Trigo (também conhecida como “la Titi”), cujo trabalho e dedicação seriam imprescindíveis para a realização de alguns dos projetos que estávamos prestes a embarcar; ou como Pere Albiac, um fotógrafo muito jovem que protestou em Praga contra o FMI e o Banco Mundial (aquilo havia abalado completamente sua vida); ou como Mar Centenera, uma estudante de jornalismo que buscava uma forma de escrever e se envolver nas coisas de uma maneira diferente do jeito distante e desapaixonado que lhe fora ensinado na faculdade; ou como Josian Llorente (aliás “Josianito”) e Maite Fernández (aliás “Cacharrito”), um casal recém-chegado de San Sebastián que veio com muita vontade de fazer coisas. Cacharrito era um artista, mas também um grande produtor, e Josian, que havia estudado arquitetura e design, logo se tornou o técnico do grupo. Ona Bros e José Colón também apareceram nessa altura determinados desde o início a montar algo relacionado com o que sabiam fazer de melhor: a fotografia. E ainda tinha o Marcelo Exposito, um artista que conhecia bem a gestão do MACBA e que se dedicou desde o início a ser o mediador entre o museu e nós.
Da ação direta como uma das belas artes
Sem quase nos conhecermos, começamos a preparar juntos as jornadas de outubro que já haviam sido batizadas com o título “Da Ação Direta como uma das Belas Artes”. O espaço que o MACBA nos cedeu foi um local que utilizavam como armazém, na Rua Joaquín Costa, bem próximo ao museu, mas longe o suficiente para manter uma certa autonomia. Chamamos-lhe “O Quartelzinho” e, desde o dia em que recebemos as chaves e nos instalamos nele, o mesmo nunca deixou de funcionar a plena capacidade.
Foi lá, nas semanas que antecederam as jornadas, que estabelecemos os primeiros vínculos com muitos dos coletivos sociais com os quais depois desenvolveríamos um bom número de projetos. Foi lá também que surgiram as primeiras ideias de campanha, os primeiros cartazes, as páginas web… No meio de toda aquela atividade apareceu também o nome “As Agências”. Se lembro bem, o nome veio de Javier Ruiz, um garoto de Málaga que morava em Londres há vários anos e na época estava muito envolvido com o movimento Reclaim the Streets. Dada a quantidade de produção gráfica que desenvolvemos em tão pouco tempo, pareceu-lhe que seria uma boa ideia construir a mesma coisa permanentemente, “algo como uma agência gráfica para movimentos sociais”. Nos divertimos com a ideia e também com o nome que ele propôs: As Agências. Um bom nome é sempre aquele que se presta a diferentes interpretações, e “As Agências” o fez. Por exemplo, sempre relacionei isso ao fato de agenciarmos tudo que podíamos antes que o museu nos desse um pé na bunda e nos colocasse no olho da rua, algo que eu tinha certeza que aconteceria mais cedo ou mais tarde. (Como foi )
Quando finalmente chegou o dia da inauguração das jornadas, decidimos mudar seu local. Em vez de fazê-los no MACBA, como planejado, transferimos para o “Espai Obert”, um centro social muito frequentado na época pelos movimentos sociais da cidade. A mudança de local deveu-se principalmente à recusa de alguns coletivos sociais em pisar no chão do museu. Acusaram-no de ter sido a causa direta do processo de gentrificação que o bairro do Raval sofreu desde a sua inauguração. E estavam certos, é verdade.
Foram dois dias inteiros de apresentações. Por ali passaram Rtmark, Ne Pas Plier, Reclaim the Streets, Kein Mensch ist ilegal e outros grupos internacionais que situavam seus trabalhos a meio caminho entre a arte e o ativismo social. As jornadas foram um grande sucesso, acompanhadas por grande cobertura da mídia. O museu ficou maravilhado e imediatamente interessado em dar continuidade ao projeto. Ele nos perguntou como planejávamos continuar com tudo que havíamos acabado de começar; Respondemos isso por meio de um “dispositivo de intervenção contínua” que se chamaria As Agências, e os propusemos que continuássemos usando “O quartelzinho” até junho com a intenção de convertê-lo em um “centro de produção simbólico”. Antecipamos até junho porque, no decorrer da jornada, ficamos sabendo que o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional haviam decidido realizar sua próxima reunião em Barcelona no início daquele mês e havíamos decidido recebê-los como mereciam . O museu aceitou e deu-nos 12 milhões de pesetas (cerca de 72.000 €) para que pudéssemos realizar o nosso plano. Nunca vimos tanto dinheiro juntos antes, nem vimos desde então.
As Agências e a arte contemporânea
Hoje se assume que a arte deve estar envolvida em seu contexto social para ser verdadeiramente contemporânea, e que o artista não é tanto um produtor individual de objetos, mas sim um colaborador e produtor de situações. Mas as coisas não eram assim quando começamos a operar sob o nome de As Agências, longe disso.
A Documenta 10, realizada em 1997, mostrou um renovado interesse pela orientação social e política da arte. Em seus anúncios exaltava a filosofia política e a sociologia como as novas estruturas transdisciplinares para a arte contemporânea. No entanto, nenhuma das práticas coletivas e ativistas que começaram a surgir na Europa, as que nos interessavam, foram incluídas naquela exposição. As obras da Documenta 10, em sua maioria instalações, foram apresentadas ao público com a clara intenção de superar a eterna separação entre arte e vida, mas tudo o que fizeram foi enfatizar ainda mais a separação que queriam abolir.
Foi nessa época que o uso de um termo muito particular também ganhou força: projeto. Um projeto era todo aquele trabalho que entendia a arte como um processo aberto e não como um objeto finito. Dentro deste termo, cedo começaram a caber quase todas as práticas artísticas que pretendiam ser mantidas ao longo do tempo e que estabeleciam, de alguma forma, um diálogo com o social. A maioria dos projetos site-specific e de estética relacional, ambos tão em voga naquela época, eram um bom exemplo de um “projeto”.
À primeira vista, uma instalação da arte relacional parecia oferecer a possibilidade de vivenciar dentro dela uma autêntica experiência social – como se cumprisse de novo o tão ansiado sonho vanguardista de eliminar a obstinada separação entre arte e a vida; no entanto, não foi assim. Quando você se aproximava de uma dessas instalações percebia-se que ficava totalmente excluído qualquer possível uso em seu cerne, e isso fazia você se sentir completamente rejeitado.
Quase toda a arte então exposta nos circuitos oficiais de alguma forma impôs essa impossibilidade de uso. Para nós, grande parte dessa arte era como o sociólogo que nunca está presente no mundo que ele descreve. É verdade que já não se centrava tanto no objeto como antes, mas tudo o que se fez com as relações e situações que agora interessavam era arrancá-las de tudo o que as ligava ao mundo real para depois deixá-las presas em uma esfera de pura aparência.
Em vez disso, nos propusemos a realizar uma série de experimentos formais e coletivos que tentaram abrir caminho para os estilos de vida que queríamos experimentar. Queríamos valorizar, entre outras coisas, as formas sub-repticiosas adquiridas pela criatividade dispersa, tática e artesanal de pessoas anônimas. Mais do que a autonomia da arte, o que realmente nos interessou foi nossa própria autonomia. A autonomia que tínhamos para nos relacionar com a arte como gostaríamos.
Além do compromisso constante de experimentar a arte coletiva, nosso trabalho sempre foi uma tentativa incessante de aplicar arte em situações concretas de nossas vidas. Algo semelhante ao que homens e mulheres da idade da pedra tinham que fazer quando desenhavam um alce com a mesma mão a qual tinham acabado de abatê-lo.
As Agências e o ativismo social
Por outro lado, o ativismo social não era muito melhor do que a arte. Quando começamos a nos reunir com todas essas entidades sociais da cidade encontramos um panorama bastante sombrio. Muitos dos chamados movimentos sociais da época ainda tentavam preencher o vazio deixado pela derrota do movimento operário. Eles eram, por assim dizer, re-edições sob a capa do movimento operário e persistiram em formas organizacionais que pareciam vazias para nós. O murmúrio de uma voz monótona avançava fortemente através de suas intermináveis assembleias e em seus discursos o elemento ideológico ainda prevalecia. Eles tinham os olhos pregados no passado, como se tivessem medo de despertar para o mundo em que realmente vivíamos.
As Agências não foram movidas pela ideologia; para nós todas as ideologias tinha desmoronado há muito tempo. Não tínhamos grandes certezas ou alternativas claras, nem tínhamos, é claro, boa disciplina militante. Nunca estabelecemos nenhum objetivo maximalista, nunca pretendemos acabar com o capitalismo ou o consumo. Nós tínhamos a opinião de que mirar um horizonte tão ambicioso não nos traria nada além de frustração, ademais de limitar nossas habilidades para perceber o que realmente acontecia ao nosso redor, na parte mais cotidiana de nossas vidas, onde era possível mudar as coisas.
Tínhamos a intuição de que havia muitas forças esperando dentro de nós mesmos. Eram forças capazes de se manifestar em qualquer lugar e em qualquer situação e capazes de mudar nossas vidas completamente. Para fazer isso não havia mais nada para encontrá-las e representá-las, para introduzi-las em nosso imaginário o mais rápido possível. É por isso que estamos comprometidos com a arte, pois toda atividade de um artista, de um bom artista, sempre consistiu em encontrar aquelas forças que aumentam a desordem, aquelas que mostram que toda sociedade está sempre em permanente transformação.
O Método da Agência
As festividades de Natal ainda não tinham terminado e já estávamos passeando todos os dias no “Quartelzinho”. Em pouco tempo , “O Quartelzinho” tornou-se o centro nervoso da organização dos protestos contra o Banco Mundial e o FMI. Novos agentes se juntaram na época. Domi, um garoto muito ativo comprometido com alguns projetos sociais que estavam acontecendo no Hospitalet, entrou. Seu trabalho foi essencial para a transformação do ônibus e para muitas outras coisas. Oriol, um web designer muito experiente que deu um importante impulso para toda a nossa imagem na internet, também foi incorporado. Na época eu chamei Michelangelo (também conhecido como “Amonal”) para se juntar à equipe. “Amonal” era um velho amigo meu de Zaragoza dos tempos de insubmissão, centros sociais e punk rock. Tinha muita experiência trabalhando como designer gráfico. A partir de seu desenho saíram muitas as campanhas gráficas dos centros sociais alternativos durante a segunda metade da década de 1990. Sem ele, dificilmente poderíamos ter realizado a produção gráfica tão extensa que pudemos produzir no curto espaço de tempo em que As Agências estiveram ativas.
Aviv e Oriana se juntaram às Agências ao mesmo tempo. Aviv era um garoto israelita que veio dos estudos de arte em Chicago. Lá ele havia produzido uma revista underground dedicada ao desenho experimental e também havia criado trajes de flutuação para o uso de migrantes que arriscavam suas vidas cruzando os mares em botes. Oriana foi uma fotógrafa documentarista argentina que passou os últimos seis anos morando em Chiapas mostrando o cotidiano dos Zapatistas. Assim que ela entrou no grupo, ela se juntou a José, Ona e Pere e nosso trabalho fotográfico deu um salto gigantesco.
Oriana não foi a única incorporação argentina, Erika Zwiener também se juntou ao grupo. Erika era designer gráfica e imediatamente começou a colaborar com Oriol e “Amonal” no desenvolvimento de propostas estéticas. Em seguida, veio Nuria Vila, uma jovem recém-formada em jornalismo que inicialmente se aproximou do “Quartelzinho” com a intenção de fazer uma reportagem sobre as Agências, mas ficou tão afetada por tudo o que estava acontecendo lá que logo deixou de lado a câmera e o caderno e entrou de cabeça e tudo. Uma das últimas incorporações foi Ales Mones. Ales era asturiano, de Gijón, e sem se especializar em nada em particular ele sabia fazer de tudo, desde tirar fotos de qualidade até costurar um terno, cozinhar para uma multidão de pessoas ou dar uma festa rave com quase nenhum recurso.
Além de todas essas pessoas que nomeei, membros do grupo principal de agentes, houve muitos outros que participaram muito ativamente no processo de criação das Agências. A maioria veio de coletivos e movimentos sociais na cidade de Barcelona, que, à medida que a data da cúpula de junho se aproximava, fez do “Quartelzinho” seu centro. Podemos citar, por exemplo, Arnau Remenat, Mayo Fuster ou Tupa Rangel; ou Enric Durán que, pouco tempo depois, teve um mandado de busca e apreensão por solicitar uma série de empréstimos bancários, investindo o dinheiro em diferentes lutas de movimentos sociais e nunca devolvendo-o aos bancos. Também caberia citar Ada Colau, uma garota que, tendo feito seus bicos como atriz em uma série local, mudou a dramaturgia para o ativismo social. Alguns anos depois, essa garota acabaria sendo a primeira prefeita de Barcelona.
As Agências tornaram-se cinco: a Agência Gráfica, a Agência de Mídia, a Agência de Moda e Acessórios, a Agência Fotográfica e a Agência Espacial. O método de trabalho que aplicamos foi o mesmo para todas: oficinas de criação coletiva. Essas oficinas constituíram espaços onde cada um dos participantes contribuía com o que sabia fazer de melhor e misturava com o que outros trouxessem. Nas oficinas das Agências os participantes entraram em contato uns com os outros e misturaram algo comum sem nunca perder as respectivas singularidades. “Singularidades colocadas em comum”, isso poderia ser uma boa definição do que eram essas oficinas de criação coletiva. Seguindo esse método realizamos todo o nosso trabalho da época, desde ações públicas e intervenções até os textos que escrevemos juntos. Indiscutivelmente, o resultado geral desse compartilhamento diversificado foi a construção de padrões, imagens e ideais compartilhados que nos serviram para realizar formas criativas de agir com as quais conseguimos enfrentar alguns dos piores inconvenientes que enfrentamos em nossas vidas diárias.
Show Bus
A primeira decisão que tomamos, como Agências, foi que ninguém cobraria um tostão sequer dos 12 milhões de pesetas que o MACBA nos tinha dado. Foi uma decisão arriscada, porque naquela época nenhum de nós tinha sua renda financeira segurada, exceto Jordi, que gozava de uma bolsa de doutorado. Ainda assim, estou convencido de que foi a decisão certa. Deixar de lado a economia pessoal e alocar todo o dinheiro para os projetos que estávamos começando a desenvolver levou a uma forma de trabalho livre de restrições externas. Lembro-me que a primeira coisa que fizemos com o dinheiro foi comprar um ônibus. Soubemos que em uma pequena cidade no país basco alguém precisava urgentemente se livrar de um ônibus muito antigo e vendia a um preço mais em conta. Então pra lá foi uma dupla de “agentes” e levaram o transporte para o MACBA em um único dia (e sem a habilitação para ônibus).
A ideia era transformar o ônibus em um “dispositivo de intervenção espacial”. Partíamos da premissa de que, nas últimas décadas, o espaço de nossas cidades tinha se tornado cada vez mais um território alheio. A vida social dos bairros havia sido drasticamente deslocada e os centros históricos das cidades haviam passado por um processo de “museificação” com a intenção de extrair a máxima rentabilidade econômica deles. De maneira generalizada, as forças econômicas ocuparam o território das cidades, tornando a vida nelas progressivamente mais difícil.
Daí a necessidade de nos dotarmos de um dispositivo móvel para enfrentar a hostilidade do terreno sem a necessidade de estabelecer uma base permanente. O que estávamos almejando com o Show Bus (isso é o que chamamos este projeto) foi desenvolver uma série de táticas de intervenção que, justamente por estarem em constante movimento, não fossem facilmente localizadas e, portanto, suprimidas. Táticas móveis capazes de contornar os mandatos de ordem impostas no espaço e nos permitir fazer uso imprevisível dele.
A primeira coisa que fizemos quando tínhamos o ônibus conosco foi mudá-lo de cor. Pintamos de cor laranja com círculos amarelos para que nunca passasse despercebido. No teto construímos um palco de madeira que ocupava toda a sua superfície e era acompanhado por um forte sistema de som. Essa infraestrutura mínima nos permitiu realizar todos os tipos de apresentações, desde shows e festas até peças teatrais, conferências ou até mesmo discussões e debates públicos. As janelas laterais do ônibus, bem como a janela de fundo, nós as transformamos em telas nas quais projetamos todos os tipos de imagens. Com o Show Bus equipado, conseguimos transformar um monte de praças e ruas da Espanha em cinemas ao ar livre improvisados. O interior do ônibus também foi completamente modificado. Substituímos as fileiras de assentos por mesas de trabalho e até instalamos sinal wi-fi portátil, algo difícil na época. Isso nos permitiu atender a todos os requisitos técnicos e logísticos exigidos por nossas intervenções públicas.
Vários coletivos e organizações sociais utilizaram o Show Bus por aproximadamente dois anos. Logo tornou-se uma ferramenta essencial para executar muitas ações diferentes. O Show Bus foi definitivamente um dispositivo que ampliou significativamente tanto a visibilidade das ações de muitos grupos sociais quanto a eficácia deles. Ação direta sobre rodas, isso era o Show Bus.
Prêt-à-révolter
O segundo investimento em dinheiro do MACBA foi a compra de algumas centenas de metros de tecidos coloridos e um par de grandes máquinas de costura. A ideia era fazer fantasias unissex que responderiam a dois propósitos diferentes. Por um lado, os ternos tinham que proteger os usuários em uma manifestação ou em qualquer outro tipo de situação em que seus corpos estivessem em risco de serem feridos. Por outro lado, nossos trajes tiveram que responder aos preceitos do que então chamamos de “representação direta”. Ou seja, nossa própria capacidade autônoma de representar nosso modo de vida. Não gostamos de jeito nenhum do modo como o ativismo social apareceu na mídia; jornalistas na época tinham começado a introduzir o termo Black Block para descrever o movimento anti-globalização. Este termo reduziu uma experiência social rica, complexa e diversificada a uma série de jovens sem cérebro vestidos de preto e encapuzadas dedicados à árdua tarefa de destruir as cidades por onde passaram. Então, partimos para realizar em um design da moda de toda a riqueza e diversidade do movimento antiglobalização que a mídia deixou de fora da representação.
Nós chamamos de prêt-à-révolter porque estávamos tentando fazer com a revolta algo semelhante ao que o prêt-à-porter fez com a moda. De alguma forma, o prêt-à-porter significava a massificação do consumo de moda, sua “democratização” por assim dizer, e nossa coleção de fantasias almejava fazer algo semelhante com revolta e ativismo social: democratizá-la em um fenômeno de massa. E este não foi o único elo que o prêt-à-révolter estabeleceu com a moda. Toda moda sempre propõe um senso de pertencimento a um grupo social e também uma “autonomia” na definição da estética e dinâmica criativa com que esse grupo se desdobra no cenário social. Bem, isso é o que nossos projetos estavam atrás, também. Como a moda, nosso prêt-à-révolter aspirava a imprimir um significado social nas jaquetas e calças que fizemos para os manifestantes. Ele procurou fazer desses trajes e seus complementos um canal de comunicação, uma espécie de transmissor simbólico capaz de representar e disseminar as condições culturais subjacentes ao ativismo social.
Para o projeto e preparação do prêt-à-révolter organizamos um bom número de oficinas com coletivos e redes sociais de Barcelona, Madrid e Zaragoza. Eram basicamente oficinas de desobediência civil em que analisávamos tanto as técnicas policiais quanto as táticas empregadas por ativistas em situações de protesto; então tentamos dar respostas na forma de designs de moda e equipamentos. Trabalhamos minuciosamente para tornar nossos projetos “apropriados” por qualquer um que precisasse deles; ou seja, os mesmos usuários poderiam transformá-los e adaptá-los às suas próprias necessidades nas diferentes situações de cada mobilização. Nas oficinas também prestávamos atenção à criação e fortalecimento do que então chamamos de “grupos de afinidade”. Sempre foi muito importante para nós que as pessoas que passaram por nossas oficinas – os futuros usuários dos trajes – estivessem envolvidas tanto no design quanto na confecção do prêt-à-révolter. Assim, ao final da oficina, essas pessoas não só acabaram sendo usuárias dos figurinos, como também conseguiram exportar a obra para outros lugares, podendo criar, eventualmente, novos grupos de design prêt-à-révolter.
Prêt-à-révolter foi uma aposta para renovar a aparência do ativismo social. Um exercício prático de “auto-representação” que buscava quebrar as paredes dos antigos compartimentos estanques onde algumas formas de ativismo estavam presas. Em suma, poderíamos dizer que o prêt-à-révolter foi uma resposta na forma de um vestuário às necessidades práticas de desobediência civil. A partir do trabalho realizado lado a lado com diferentes grupos e redes ativistas, duas coleções completas de trajes prêt-à-révolter foram finalmente feitas: a básica e Esportes de lixo.
A coleção Básica de prêt-à-révolter foi equipada com os acessórios essenciais para proteger adequadamente as áreas mais sensíveis dos corpos dos manifestantes. Esta coleção também incorporou complementos projetados especificamente para a defesa do manifestante, como alguns airbags divertidos que instalamos nos antebraços das jaquetas ou micro-câmeras, que adicionamos em algum outro modelo específico, permitindo que o usuário transmitisse ao vivo qualquer situação em que ele pudesse se encontrar. A coleção de Esportes de Lixo, por sua vez, destinava-se a situações de alto risco, para suportar ocasiões em que os enfrentamentos eram muito maiores. Era feita inteiramente de materiais reciclados (garrafas plásticas e sacos de lixo, principalmente – daí seu nome). O ar comprimido nas garrafas plásticas vazias e fechado com a tampa foi capaz de suportar impactos de pressão muito alta, condição essencial para suportar uma carga policial na linha de frente.
Como qualquer outro elemento da moda, o prêt-à-révolter representava uma força simbólica que aspirava responder a uma série de mudanças estruturais que, em nossa opinião, estavam ocorrendo na sociedade. Mudanças que tinham a ver com a expansão da crise econômica para mais setores da população e, portanto, a necessidade de ampliar o campo – e o imaginário – do protesto social. As pessoas tinham que começar a se preparar para a revolta, e isso é literalmente o que prêt-à-révolter fez.
Artmani
A vulnerabilidade dos corpos em situações de protesto em massa era algo com o qual estávamos bastante preocupados nas Agências. O prêt-à-révolter não foi o único de nossos projetos que prestou atenção a esta questão; assim foi também com o “Artmani”. “Artmani” eram escudos portáteis feitos de um material muito leve e muito resistente ao mesmo tempo, capazes de realizar pelo menos algumas funções de suma importância para nós. Por um lado, os escudos “Artmani” serviram para proteger os manifestantes de quaisquer atos de violência que pudessem ocorrer durante um protesto (choques policiais, impactos de bala de borracha, etc.); por outro lado, “Artmani” era, como o próprio nome sugere, uma exposição de arte projetada para ser exibida em manifestações. As fotografias anexadas à superfície externa dos escudos compuseram um conjunto visual capaz de atrair os olhos de todos, incluindo, é claro, o dos jornalistas encarregados de cobrir o evento.
Os corpos dos manifestantes cobertos por essas fotografias em grande formato compõem um conjunto visual absolutamente irresistível para as câmeras de imprensa. Foram inúmeras vezes que “Artmani” ocupou as páginas dos jornais da época. O surgimento daquelas imagens (tão diferentes das usadas tradicionalmente pela mídia) de alguma forma inaugurou um novo imaginário de protesto social. Uma nova maneira de interpretá-lo e senti-lo. Representar um acontecimento não significava para nós convertê-lo apenas em uma imagem, e sim associá-lo a um novo sentido. Assim como o prêt-à-révolter, “Artmani” foi um modo prático de infiltrar nos meios de comunicação novas e imprevisíveis interpretações do ativismo social e suas maneiras de atuação. “Artmani” foi outra maneira que encontramos para confrontar o mundo usando a imagem como escudo.
Dinheiro grátis
Durante todo o período das Agências também realizamos um bom número de campanhas gráficas, todas em colaboração com grupos e movimentos sociais de diferentes cantos da Espanha. Campanhas anti-guerra como a Guerra Mítica ou campanhas contra a especulação e privatização do espaço urbano, como a que projetamos em torno do Reclaim the Streets que organizamos no centro de Barcelona em junho de 2001. No entanto, a campanha que teve mais presença e durabilidade nas ruas foi, sem dúvida, a do “Dinheiro Grátis”. Foi uma campanha que realizamos de mãos dadas com o coletivo “Oficina 2004”, um grupo de veteranos das lutas autônomas dos anos 70 acompanhados por alguns jovens estudantes de filosofia.
O processo de criação que realizamos com a “Oficina 2004” encarna perfeitamente o que foram as oficinas das Agências. Assim que começamos a colaborar juntos, todos os limites que nos separavam foram apagados. Tanto os designers quanto os artistas das Agências e os membros da “Oficina 2004” nos misturamos assim que começamos a trabalhar juntos, de forma única. Discussões sobre conceitos filosóficos e considerações estéticas foram discutidas em uníssono naquele processo de criação coletiva.
Juntos conseguimos transformar em uma coleção de cartões postais e cartazes parte das críticas à economia e ao trabalho em que vinham elaborando na “Oficina 2004”. Para eles, o dinheiro era o código com o qual a realidade era programada. Uma realidade em que a vida tinha sido reduzida ao trabalho (ou à busca de trabalho). Nessa realidade, “Dinheiro Grátis” foi apresentado como um gesto capaz de interromper esse código repetitivo e excludente. Além dos cartazes e cartões postais, também produzimos uma imensa quantidade de rolos de fita adesiva com o logotipo “Dinheiro Grátis” impresso em sua superfície. Este rolo de fita acabou sendo, para muitos coletivos da cidade, um elemento indispensável na realização de suas ações. Houve tantas ocasiões em que o rolo foi usado que acabou se tornando uma das imagens mais visíveis e influentes do ciclo de protestos que se abriu com a contra-cúpula do Banco Mundial em Barcelona.
O processo colaborativo que iniciamos no início de 2001 com o “Oficina 2004” está aberto até hoje. Ao longo de todos esses anos, nunca deixamos de colaborar, produzindo juntos conceitos e materiais gráficos que foram testados em inúmeras ações que realizamos juntos.
Durante o inverno e a primavera de 2001, as Agências não pararam de trabalhar por um único segundo. “O Quartelzinho” gradualmente aumentou sua atividade para se tornar o centro nervoso dos protestos contra o Banco Mundial e o FMI que ocorreriam em junho. A atividade foi frenética; passamos muito mais tempo lá do que em nossas precárias casas de aluguel. Na verdade, eu não me lembro de ter passado um único dia inteiro na minha casa; Eu chegava tarde da noite, deitava na cama por algumas horas e às nove da manhã eu estava de volta ao “Quartelzinho”. Compartilhar aquela intensidade com os outros agentes envolvidos estava nos aproximando cada vez mais um do outro. Nos tornamos amigos e essa amizade causou, entre muitas outras coisas, a queda dos limites que mantinham as cinco agências separadas uma da outra. Lembro-me que um dia estávamos realizando cinco reuniões diferentes ao mesmo tempo – o que era muito comum na época – e, de repente, paramos tudo, olhamos nos olhos e dissemos: “Foda-se essas cinco agências, com uma só temos mais do que suficiente: as Agências, isso é tudo.” Começamos a rir, juntar as mesas e a partir desse momento todos começamos a nos envolver e assumir a responsabilidade por tudo.
A bolsa ou a vida
O mês de junho se aproximava cada vez mais e a mídia local não parava de repetir as muitas controvérsias que ocorriam durante as manifestações contra o Banco Mundial. Comentavam na TV, nos jornais, em todos os lugares. No entanto, menos de um mês após o início das mobilizações, eles ainda não tinham nenhuma evidência mínima para corroborar suas narrativas. Nem uma única fotografia para ilustrar tal suposição, nem um único recipiente em chamas, nem mesmo uma triste vitrine quebrada, nada. Foi então que sugerimos “A bolsa ou a vida”.
Josian, sempre atento a tudo, descobriu que o edifício da Bolsa de Valores de Barcelona era considerado um edifício de interesse turístico e que, por isso, podiam ser solicitadas visitas guiadas. Esse foi o gatilho para nossa ação. Ligamos para os escritórios da Bolsa de Valores de Barcelona e pedimos uma visita guiada ao interior do prédio. Uma garota muito gentil nos respondeu que não havia problema, que ela só precisava saber o número aproximado de pessoas que viriam; contamos a ele cerca de dez mil mais ou menos. Logo depois de desligar o telefone, a simpática garota fez exatamente o que queríamos que ela fizesse: chamar a polícia. Nesse ínterim, nos dedicamos a enviar à redação dos jornais locais uma série de fotografias que havíamos tirado na porta do prédio da Bolsa alguns dias antes. Foram algumas fotos em que aparecemos retratados como um grupo comum de turistas, mas com bolsas na cabeça (bolsas na Bolsa, tudo muito conceitual). As fotos vinham acompanhadas de uma nota na qual informamos que estávamos preparando a maior visita da história à Bolsa de Valores de Barcelona, e que toda a imprensa estava convidada.
A imprensa deve ter gostado muito das fotos, porque no dia seguinte várias delas apareceram em quase todos os jornais. Suponho que eles viram nelas os sinais das controvérsias que seus editores tão insistentemente abordaram. A primeira parte do plano já foi cumprida e a segunda parte deixamos nas mãos da polícia. Ao ver nossas fotos na imprensa, o ministro do Interior do Governo catalão ordenou a ampliação do dispositivo de controle que a polícia já havia instalado ao redor da Bolsa de Valores após o telefonema daquela gentil moça. Mais cercas, mais vans, mais policiais. Um dispositivo de controle mais completo, e tudo para evitar uma visita que, por outro lado, não tínhamos planejado fazer.
Os únicos afetados por essas medidas de controle foram os acionistas, os corretores, que, acostumados a entrar e sair do prédio da Bolsa como o Pedro por sua casa, se inconformaram com o fato de serem revistados e farejados por cães treinados várias vezes. Eles ficaram tão chateados com tudo, que decidiram, por unanimidade, parar de ir à Bolsa, por alguns dias, em protesto. Assim, o prédio da Bolsa ficou fechado por duas jornadas consecutivas por causa de um simples telefonema e algumas fotos absurdas. Fizemos uma festa descomunal para comemorar. Acompanhados do Showbus, com a música a todo vapor, centenas de pessoas passaram o dia inteiro dançando freneticamente com bolsas na cabeça. Até demos um mergulho no chafariz público do Paseo de Gracia, bem em frente ao prédio da Bolsa. E se é que se tem de escolher entre a Bolsa ou a vida, escolhemos a vida sem pensar duas vezes. Muita vida.
O fim das Agências e o retorno à autonomia
Todos esses projetos e alguns outros como, por exemplo, a agência de notícias independente Indymedia, que ajudamos a criar; ou o bar que abrimos num dos espaços do MACBA que dava para a Praça do Patio Corominas e no qual muita gente se alimentou de graça durante vários meses, ocuparam diariamente as páginas da imprensa também durante o meses antes da cúpula do Banco Mundial e do FMI em Barcelona. Isso, somado à maciça participação da população na organização das marchas e eventos contra a cúpula, fez com que o Banco Mundial e o FMI decidissem cancelar sua reunião. Foi a primeira vez na história que algo assim aconteceu. Todos vivemos como um verdadeiro triunfo, celebramos em grande estilo e, além disso, decidimos seguir em frente com o programa de mobilização que já havia sido divulgado.
Todos os nossos projetos tiveram grande relevância nessas mobilizações massivas. O Showbus, os trajes prêt-à-révolter, os escudos fotográficos “Artmani”, tudo era usado por muita gente naquela época. Na manifestação principal, a polícia disparou em centenas de milhares de pessoas. Isso causou caos em toda a cidade. Alguns de nós, juntos a algumas centenas de outras pessoas, nos refugiamos no MACBA e a polícia também descarregou bolas de borracha lá. Uma dessas bolas quicou e acabou acertando a porta de vidro do museu. Desde então, houve dois grandes vidros quebrados na história da arte, o de Duchamp e o nosso.
As coisas ficaram tão tensas que a própria delegada do Governo da Generalidade da Catalunha pediu para se encontrar pessoalmente com Manolo Borja, diretor do MACBA. Naquela reunião, a delegada expressou seu desconforto com nosso trabalho e avisou que planejava interromper nossas atividades imediatamente. Por alguns dias, parecia que Manolo iria perder o cargo de diretor e que a polícia iria fechar o “Quartelzinho”. Alguns membros da equipe técnica de Manolo ficaram tão nervosos que exigiram que o diretor nos expulsasse. Mas finalmente nada aconteceu. O organograma do museu foi mantido como estava e o “Quartelzinho” também. Depois das mobilizações de junho, Manolo Borja nos convocou para uma reunião e ali propôs que continuássemos nosso trabalho por mais uma temporada, mas em condições muito estritas. A partir de agora, o nosso horário de trabalho teria que ser drasticamente reduzido, adaptando-se ao horário do museu e, além disso, cada novo projeto que concebíamos tinha de ser submetido à aprovação prévia do diretor. Assim que saímos daquela reunião, ficou claro para nós que a coisa havia acabado.
A experiência das Agências nos mostrou que quando a arte política não vem acompanhada de um alto grau de autonomia a ser exercida, ela é apenas mais um rótulo, outra forma de adaptar as práticas sociais às lógicas institucionais do mundo da arte e, portanto, aos do mercado. Se se tratava de responder conjuntamente aos nossos modos de vida e às formas culturais que as tornavam possíveis, isso exigia um grau de autonomia de que não estávamos dispostos a abdicar de forma alguma. Portanto, não aceitamos as condições do diretor; Recolhemos os nossos pertences, abandonamos o navio institucional e acabamos com As Agências.
Pouco depois da nossa marcha, Manolo Borja escreveu um artigo bastante extenso no qual apresentava As Agência como um exemplo do que distinguia o MACBA de outros museus internacionais. Ao contrário do museu do autor, como o MOMA ou do museu espetáculo como o Guggenheim, e, ao contrário de todas aquelas instituições que defendiam uma visão da cultura construída com base nas bienais e outros eventos importantes, o trabalho das Agências, consagrada com a dinâmica e as necessidades dos movimentos sociais, foi, nas palavras do diretor, o que fez do MACBA um museu vivo e plenamente atuante no âmbito social. Poucos meses após a publicação deste texto, Manolo também deixou o MACBA, foi para Madrid e passou a dirigir o “Reina Sofia”.
Jordi também voltou a Madrid. Lá ele iniciou uma nova etapa com David (aliás “Tina Paterson”), um velho amigo seu que havia passado pelo “Quartelzinho” algumas vezes. Os dois juntos realizaram a campanha Mundos Sonhados e também o SCCCP (Sabotaje Contra el Capital Pasándoselo Pipa)¹. Por um tempo tentamos continuar trabalhando juntos, eles de Madrid e nós de Barcelona, mas não deu certo e logo perdemos o contato definitivamente. Em Barcelona ficou um grupo de cerca de quinze pessoas e muitas outras com as quais continuamos a colaborar assiduamente. Procuramos um novo espaço de trabalho, um apartamento muito grande no bairro da Gracia que há muitos anos fazia parte do movimento social; Deixamos nossas coisas, todos os artefatos que havíamos produzido nas Agências e, em seguida, partimos para Gênova para participar dos protestos internacionais contra o G8 vestidos com nossa coleção de prêt-à-révolter de verão.
Gênova, nosso ponto de inflexão
A contra-cúpula do G8 em Gênova marcou o ponto alto do movimento antiglobalização. Aconteceu em julho de 2001. Naquela época, o FMI e o Banco Mundial enfrentavam dificuldades reais para se reunir e realizar suas cúpulas. As mobilizações sociais contra a globalização neoliberal não pararam de crescer e o mesmo aconteceu com a violência policial. Em Göteborg, se contabilizou o primeiro ferido à bala e, em Gênova, o primeiro morto. Carlo Giuliani, um jovem de 23 anos, foi morto a poucos metros de onde estávamos quando foi baleado por um policial. Aquele acontecimento traumático e tudo o mais que vivemos naqueles dias em Gênova, foi um importante ponto de inflexão em nosso trabalho.
O argumento para a excessiva repressão policial foi baseado em um mito criado pela mídia: o mito do Black Block. A mídia construiu uma imagem muito particular desse grupo político, representando-o como criminoso e único responsável pela violência produzida nas manifestações antiglobalização. O Black Block nas mãos dos órgãos de imprensa começou a aparecer como o novo inimigo. Inimigo do poder financeiro e dos cidadãos que rejeitam a violência, e também inimigo do próprio movimento antiglobalização, que marcou a linha divisória entre os manifestantes violentos e os que não o eram. Essa representação simplista da mídia, baseada no esquema amigo/inimigo, foi capaz de diluir drasticamente a expressão rica e diversa do conjunto de movimentos sociais que compunham aquele movimento global.
New Kids on the Black Block
Por isso consideramos urgente começar a atuar de forma efetiva no desgaste sistemática do termo Black Block e, assim que voltamos a Barcelona, colocamos as mãos às obras. Para isso, voltamos a uma ideia com a qual já havíamos começado a flertar no último período das Agências: os The New Kids on the Black Block. O nome era um cruzamento entre Black Block e New Kids on the Block, um grupo musical de grande sucesso no final dos anos 80 e início dos anos 90. De alguma forma, esse grupo foi pioneiro no fenômeno que logo se tornaria conhecido, como B-boys ou grupos de fãs. The New Kids on the Block estabeleceu uma fórmula que mais tarde seria repetida em inúmeros outros grupos, como os Back Street Boys ou as Spice Girls. Cinco jovens com estéticas diversas, facilmente reconhecíveis pelo público adolescente, que dançavam e executavam canções cativantes. Atrás desses grupos estava escondida uma fórmula perfeita estudada pela gravadora de plantão com um propósito claramente comercial.
O que queríamos com o New Kids on the Black Block não era criticar esses grupos, nem o Black Block. O que procurávamos era demonstrar a lógica comunicativa que insere uns e outros na dinâmica do consumo. Toda a nossa ação teve como objetivo denunciar a criminalização do movimento antiglobalização e atacá-la, mostrando os mecanismos com que ela é construída. E fizemos isso nos apropriando das formas e da linguagem de um grupo de fãs. Produzimos adesivos, pôsteres, fanzines e broches e compusemos músicas e alguns outros videoclipes. Fizemos também diversos designs de moda pensados especificamente para serem utilizados nas ações que o New Kids on the Black Block realizaram em várias cidades do mundo.
Os New Kids on the Black Block logo se converteu, rapidamente, em uma ferramenta para a transgressão política dedicada a descobrir os mecanismos usados pelos discursos dominantes. Em nossas performances e atuações nos apropriamos desses discursos e os rompíamos por dentro, abrindo-os para uma representação mais diversa e complexa. Nós nos apresentávamos na rua, no meio de tumultos ou na televisão. Oferecemos inúmeras conferências de imprensa em nome do movimento antiglobalização. Ninguém jamais soube quem estava se escondendo por trás desse nome; Os New Kids on the Black Block sempre foram concebidos como uma “identidade múltipla”, uma espécie de máscara coletiva e anônima. Os New Kids on the Black Block deram a todos os que necessitavam uma faculdade expressiva e representativa capaz de fazer frente às descrições reducionistas e criminalizantes que tanto veiculavam na mídia.
A apresentação pública dos New Kids on the Black Block foi feita em todo lugar. A União Europeia acabava de conceder a presidência semestral à Espanha, e uma campanha intitulada “Contra a Europa do capital, da globalização e da guerra” foi lançada em todo o país para protestar em cada uma das cúpulas programadas durante o período da presidência. Nosso Showbus seria um dos principais protagonistas desses protestos. A ideia era que ele viajasse pelo país oferecendo-se a diversos movimentos sociais como ferramenta de comunicação e de intervenção. Mas era impossível. Um dia antes do início das primeiras manifestações em Barcelona, o Showbus apareceu completamente destruído.
Entraram no interior do ônibus à noite e destruíram as mesas de trabalho, televisões e a cabine do motorista. Em seguida, subiram no teto e fizeram o mesmo com o palco. E para terminar o encharcaram de gasolina e o incendiaram. A notícia nos deixou completamente confusos, não sabíamos o que fazer nem o que dizer. Nenhuma das respostas que normalmente são dadas a este tipo de incidente nos convenceu completamente. Não nos vimos aparecendo na imprensa tristes com a perda, nem nos vimos aplicando a lei do olho por olho. Então, depois de dar algumas voltas no assunto, ficamos inclinados a fazer da crise uma oportunidade e aproveitamos esse incidente para apresentar publicamente os New Kids on the Black Block.
Vestimos os ternos, tiramos algumas fotos bem engraçadas no ônibus queimado e mandamos para a imprensa junto com uma nota que dizia: “Nós somos os New Kids on the Black Block, um grupo tão radical que queima seu próprio ônibus.” A coisa funcionou às mil maravilhas: em poucas horas todos já conheciam o New Kids on the Black Block. Foi assim que essa nova identidade coletiva conseguiu se infiltrar na máquina geradora de mitos e em muito pouco tempo centenas de fãs começaram a aderir à sua causa.
Durante todo o tempo em que fomos os New Kids on the Black Block, colocamos à prova, sempre com muito humor, uma série de estratégias criativas que conseguiram combater a criminalização da mídia e a repressão policial em inúmeras ocasiões. Porém, a violência e a repressão contra o movimento antiglobalização cresciam e não tiramos da cabeça a memória de Gênova.
Assim, durante todo o tempo que durou a volta ao mundo chamada Outra Turnê Mundial é Possível, continuamos pensando em um novo modelo de intervenção. Queríamos continuar fazendo o mesmo, combater o poder das multinacionais e o espírito do neoliberalismo (cada vez mais intrusivo), mas agora queríamos fazer isso no cotidiano, sem depender de grandes eventos ou manifestações de massa. Estávamos convencidos de que devia haver algo que as pessoas faziam todos os dias e que, de alguma forma, já era uma ameaça à globalização capitalista, por menor que fosse. Procuramos em todos os lugares incessantemente até que, finalmente, um dia, encontramos algo: Mangar². Esse hábito enraizado em milhares de pessoas causou prejuízos milionários às empresas multinacionais. Mangar era uma espécie de guerra de guerrilha invisível travada diariamente em shoppings em todo o mundo. Criamos a marca «Yomango» justamente para tornar esta guerra visível.
Yomango
Lembro que o nome me veio quando estava na cama. Eu tinha acabado de desligar a luz quando de repente “Yomango” soou como um trovão na minha cabeça. Me recompus do golpe, acendi a luz da cabeceira e anotei no meu caderno; logo ao lado escrevi um pequeno comentário: “Uma marca que mistura tudo com outras marcas”. Apaguei a luz e continuei dormindo. Nos dois dias seguintes, me tranquei em casa e trabalhei um pouco mais na ideia. Eu fiz muitas anotações e desenhei um esboço estranho. Na quinta à noite nos encontramos todos para jantar na casa da Oriana e, quando terminamos, apresentei a ideia ao grupo. A recepção foi espetacular, dava para perceber que era uma ideia que passava pela nossa cabeça. No dia seguinte já estávamos envolvidos na criação desta marca e no seu estilo de vida.
O Yomango foi desde o início uma tentativa de reorientar o marketing e todas as suas técnicas de intervenção social em busca de uma essência humana capaz de se determinar para além da economia. Partimos da conclusão de que o impulso comercial a que nossas vidas estavam sendo empurradas as colocava sob o signo de uma paixão muito triste. Sentíamos que toda a felicidade representada diariamente na publicidade escondia atrás dela um oceano de tristeza e insatisfação. De alguma forma, Yomango foi nossa resposta a essa situação. O que fizemos com a criação dessa marca foi sair e testar as possibilidades que tínhamos de exercer algum tipo de intervenção sobre um imaginário que, com cada vez mais ímpeto, nos arrastava para uma existência muito limitada, a do consumidor. Yomango foi a nossa maneira de explorar os limites do verdadeiro prazer.
Nós propusemos um desafio: Yomango nunca criaria nada, tudo o que Yomango faria seria mangar. Decidimos assim porque sentimos que, para estabelecer uma relação subversiva com o consumo e suas representações, bastava combinar de forma diferente os elementos que já estavam presentes em seu imaginário. Recompor as verdades dolorosas escondidas por trás dos objetos de consumo e de suas propagandas produziu inúmeras situações que trouxeram consigo grande prazer, tanto individual quanto coletivamente. Não à toa, um dos slogans mais usados nos primórdios da marca foi um que mandamos para a Mastercard e que dizia: “Yomango, porque a felicidade não se compra”
Uma das primeiras coisas que fizemos quando tínhamos o logotipo e o site prontos foram os jantares do Yomango. Os jantares do Yomango eram encontros semanais em que muitas pessoas compartilhavam tudo o que haviam trazido durante a semana. O fato do menu não poder ser conhecido com antecedência deu a estes jantares espontaneidade e muito improviso. Os jantares rapidamente se tornaram um espaço de referência na cidade de Barcelona. Foi também nessa época que instalamos um módulo de publicação aberta em nosso site, algo como um pequeno mural do Facebook, mas anônimo e gratuito. Tanto nos jantares como nesse fórum online, estabeleceu-se de imediato uma comunidade de pessoas que, durante vários anos, constituíram uma estrutura de troca de conhecimentos, práticas e experiências muito enriquecedora para toda a marca Yomango e o seu estilo de vida. Destes dois espaços, por exemplo, nasceram muitas das ideias que o departamento de moda iria concretizar mais tarde. Lá foram criadas as primeiras músicas e muitas das imagens que representaram a marca em suas primeiras temporadas.
O alto nível de participação que a marca despertou mostrou com absoluta clareza que Yomango questionava e tornava visível algo que era difundido na sociedade, mas muito pouco visível até então. Com o intuito de dar lugar a toda essa atividade, criamos uma série de departamentos. O departamento de arte e design, o departamento de moda e acessórios, o departamento de Investigação e Desenvolvimento e, claro, o departamento de mangação. Como ainda não tínhamos um centavo, alguns de nós se inscreveram para trabalhar à noite nas lojas de algumas das maiores empresas multinacionais de vestuário, como Zara ou H&M. Foi lá que realizamos todos os testes com inibidores de frequência e outros materiais que depois aplicamos tanto nos designs de moda Yomango quanto nas ações de performance da marca. De alguma forma, a rede social e o estilo de vida que Yomango acabou se tornando começaram a se formar naquelas noites intermináveis trancados naquelas enormes lojas escuras enquanto descarregávamos caixas de roupas dos caminhões da empresa e pendurávamos milhares de roupas em seus cabides correspondentes.
Em 5 de julho de 2002, apresentamos a marca à sociedade. Havíamos recebido o convite para participar de uma exposição no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona (CCCB) e decidimos aproveitar a oportunidade para divulgar a marca. O evento em questão teve lugar numa sucursal da Bershka, na rua Portal de l’Angel, em Barcelona, em meio a época de vendas. A rua fervilhava de gente quando Yomango executou seu jogo de mágica particular. Um vestido azul tamanho 34 com cinto retro e uma borboleta estampada no peito desapareceu aos olhos de todo o mundo, transformando-se numa verdadeira obra de arte que, poucas horas depois, foi exposta no museu. Todos os jornais locais ecoaram a notícia: “Grupo anti-sistema afirma o roubo como um novo estilo de arte”, “Mangar nas multinacionais, a última tendência da arte”. A força dessa intervenção foi tanta que abalou até a prefeitura, que teve de comparecer ao CCCB para deixar claro ao diretor que “a arte serve para inventar problemas, não para criá-los”.
Depois dessa intervenção, muitas outras vieram. Em pouco tempo Yomango se espalhou como um rumor por toda parte. Tanto museus como centros sociais de todo o mundo começaram a se interessar por esta estranha marca que se alimentava de tudo o que mangava as outras marcas que cruzavam o seu caminho. Em Madrid, Jordi e David começaram a dar o gás na marca. Eles publicaram alguns livretos que tiveram muito impacto: O Livro Vermelho e Livro Púrpura de Yomango (Para te fazer roxo). Eles também organizaram sessões de rap “patrocinadas” pela marca. Em Barcelona ampliamos o número de colaboradores, Bani Brusadin e Flo passaram a fazer parte do grupo. Saímos em turnê, visitamos muitos países e em cada um deles abrimos uma nova filial do Yomango. Em menos de um ano, conseguimos que o departamento de gestão coordenasse as atividades da marca em países de vários continentes: México, Itália, Alemanha, Argentina, Chile … Sem nem perceber, Yomango se tornou mais uma multinacional. A única marca multinacional fora do mercado. Em tempo recorde, nossa marca se tornou um símbolo de resistência à globalização neoliberal, e o fez simplesmente manipulando a linguagem e a aparência das empresas multinacionais – bem, a linguagem, a aparência e outras coisas.
Como qualquer outra arte, a de Yomango tinha a habilidade gestual de estabelecer relações imprevisíveis com a realidade e, portanto, redefini-la. Nossas performances nos shoppings, os desenhos de moda da marca, os catálogos, tudo isso desempenhou o papel de tradutor dos significados simbólicos que operavam no consumo. Foram pontes mediadoras entre a história particular de cada indivíduo e as grandes histórias que compõem a sociedade de consumo. Se todas as representações publicitárias como um todo negam a espontaneidade das pessoas, sua criatividade e, em última instância, sua capacidade de transformar o que as cerca, nossas intervenções artísticas fizeram o contrário. Tratavam de recuperar nosso poder de agir no mundo; nossa capacidade de modificá-lo. Foram, por assim dizer, uma tentativa de inaugurar uma relação diferente com o espaço e o tempo de consumo, ambos já implantados naquela época para quase todo o espaço e tempo de nossas vidas.
Yomango desenvolveu uma arte de intervenção que foi capaz de cruzar, em várias ocasiões, a linha tênue que leva ao prazer. Esse foi precisamente o plano de relação com a existência que Yomango nos convidou a entrar. Com o Yomango aprendemos que o que nos rege é, na verdade, um ambiente (visual, arquitetônico, urbano …) que, embora à primeira vista pareça abranger tudo, está na verdade cheio de buracos. Os buracos não são vistos à primeira vista porque o ver nunca se contentou com o visível. Yomango nos ensinou que os buracos existem apenas na medida em que os fazemos existir, e que só assim, fazendo existir o que não pode ser visto a olho nu, é possível estabelecer uma nova relação com tudo o que nos rodeia. Na verdade, as ações da Yomango eram apenas isso, linhas de vôo capazes de interromper o tempo e o espaço de consumo. A insistência em traçar essas linhas acabou provocando o surgimento de um lugar (a própria marca Yomango), meio imaginário e meio físico, a partir do qual muitas pessoas puderam estabelecer uma relação diferente com o consumo. Foi precisamente ali, naquele lugar inesperado, onde se instalou toda a sua comunidade internacional e onde se afirmou o seu estilo de vida. Às vezes acontece que alguém chama a vida com as palavras certas e a vida vem. Nós a chamávamos de Yomango e a vida veio.
Uma força sem nome
Yomango nos manteve ocupados por alguns anos. A imensa atividade que produziu e a influência que exerceu sobre tantas pessoas e lugares diferentes modificou a nossa forma de trabalhar e de compreender o social e o político. Todas aquelas ações realizadas por pessoas anônimas, todos aqueles gestos não autorizados capazes de transformar em gozo situações adversas sem fim, sem ter que contar com as clássicas alavancas da ação política, nos fizeram antecipar o que estava por vir. A partir de 2004, começamos a testemunhar uma série de expressões políticas que não respondiam mais ao que se entendia por “movimento social”. Foram presenças que surgiram em público, mostrando-se completamente irrepresentáveis em termos de representação política. Expressões coletivas em que o existencial e o político aparecem entrelaçados de forma indivisível. Eles eram, como Yomango, espaços de subjetivação inesperados nos quais qualquer um poderia se encaixar. Espaços capazes de interromper o funcionamento social que configura o mapa do possível. Como não tinham nome, nos referíamos a eles como “forças sem nome” e ficamos imediatamente interessados nelas.
A primeira vez que vimos uma dessas forças sem nome aparecer foi depois dos atentados de 11 de março de 2004, em Atocha. Aquela resposta social espontânea que inundou as ruas de toda a Espanha em poucas horas nos deixou de boca aberta. Diante do horror do atentado, as vidas das pessoas pareciam se agarrar umas às outras para enfrentá-lo. Essa ligação inesperada produziu um espaço social mais inclusivo e múltiplo. Era um espaço que se caracterizava pela irrepresentabilidade: ninguém o convocou; Não foi assinado por nenhuma entidade, o chamado só circulou na forma de SMS e na Internet. O chamado não foi atendido em bloco; Ninguém sabia exatamente quem estava ao lado, foi um acontecimento dos mais diversos, pois uma vez aquilo não partiu de um sentido anterior, mas foi construído na hora. No curto espaço de tempo que durou, uma grande criatividade foi exposta, milhares de novos slogans proliferaram, banners anônimos e pessoais carregados de grande expressividade íntima. Aquela expressão social incomum virou tudo de cabeça para baixo e desapareceu tão rápido quanto apareceu.
V de Vivienda³
A segunda força sem nome apareceu com “M de Moradia.” Era o ano de 2006; naquele ano, a Espanha construiu mais casas do que a França, Itália e Alemanha juntas. Isso provocou a maior bolha econômica da história do nosso país: a bolha imobiliária. Foi a época em que os bancos ofereciam hipotecas de 40 anos a qualquer pessoa que viesse aos seus escritórios. 40 anos da sua vida pagando por um lugar para morar. A situação era totalmente insustentável (muito parecida com a de agora, por outro lado) e essa insustentabilidade logo tomou a forma de um e-mail anônimo que saltou, como uma lebre, de caixa de entrada em caixa de entrada por toda internet. O e-mail era breve, dizia apenas o seguinte: “Pelo fim da especulação imobiliária e pelo direito a uma casa digna, no próximo domingo todos sentados nas praças da Espanha”. Mais uma vez, uma voz anônima expressando dor e desconforto compartilhados por muitos. A única diferença com a mobilização dos ataques foi que essa nova força sem nome não desapareceu tão rapidamente.
A primeira “sentada” foi um sucesso. Milhares de pessoas responderam ao chamado ocupando as praças das principais cidades espanholas. Todos nós que comparecemos experimentamos a alegria que vem quando o poder de estarmos juntos nos empurra. No domingo seguinte, a operação foi repetida e assim mais algumas vezes. Essa sucessão de chamados anônimos começou a formar uma espécie de movimento espontâneo; pela primeira vez, uma força anônima e massiva aspirou a se sustentar ao longo do tempo, e isso trouxe consigo o problema da visibilidade.
De certa forma, o movimento por moradia digna parecia estar escondido. Como nome, escolheu “V de Vivienda”, uma piada, um trocadilho com o quadrinho e o filme V de Vingança. Essa escolha foi pautada pela vontade explícita de não ser nomeada, nem representada, nem mesmo identificada. “V de Vivienda” não significava nada mesmo e precisamente por isso, porque não era nada, havia lugar para todos lá dentro. Era dessa capacidade inclusiva e não identificada que vinha toda a sua força, a força sem nome. Mas ao tentar se sustentar ao longo do tempo, as coisas se complicaram, e o “V de Vivienda” foi imediatamente forçado a adotar uma identidade concreta que pudesse ser facilmente reconhecida pela mídia se quisesse continuar a manter a “cota” de visibilidade que, para surpresa, ele havia ocupado com sua irrupção pública.
Tivemos alguma experiência com os problemas que surgem por sermos visíveis. As Agências e Yomango nos ensinaram algumas coisas sobre isso. Portanto, decidimos agir sobre o assunto. Se, para continuarmos presentes no espaço midiático, agora precisávamos nos definir e adotar uma imagem, propusemo-nos a encontrar uma que desgastasse o menos possível a força que o fato de não termos um nome nos dera. Temos que trabalhar. A coisa não foi fácil: encontrar um imaginário comum nessas concentrações de pessoas tão diferentes não foi nada fácil.
Após várias tentativas, percebemos rapidamente que tentar encontrar uma característica comum a todos nós era uma tarefa impossível. As pessoas não chegavam a essas concentrações motivadas por uma ideologia comum, não éramos só de esquerda ou de direita, ou, se éramos, essa não era a principal condição que definia essas concentrações, nem o eram por gênero, idade ou raça. Por fora, essas concentrações eram radicalmente heterogêneas. Então decidimos mudar nosso plano e começamos a procurar algo comum a todos lá dentro. Perguntamos a centenas de pessoas diferentes como se sentiram quando, de uma forma ou de outra, enfrentaram a situação de moradia. Queríamos ver se havia algo dentro de todas essas pessoas tão diferentes que representasse, de alguma forma, um terreno comum a partir do qual criar um imaginário que nos representasse minimamente. E sim, houve. No fundo, todos nós sentíamos como se não tivéssemos uma casa na porra da nossa vida.
Pegamos esse sentimento e o transformamos em uma insígnia: “Você não vai ter uma casa na porra da sua vida.” Imprimimos em cartazes, adesivos, camisetas e, automaticamente, essa frase se tornou o grito de guerra do V de Vivienda. Por um tempo, foi realmente impossível andar pela rua sem encontrar essa frase. Milhares de pessoas se identificavam com ela, e esse não era um slogan fácil. Esse slogan, sem dúvida, rompe com o bom senso que costuma acompanhar outros slogans usados pelos movimentos sociais. Não ofereceu esperança (“Sim, podemos”); não ofereceu futuro (“Por um amanhã sem pobreza”); Não ofereceu alternativas (“outro mundo é possível”); E, no entanto, quando quando alguém lia essa frase, tinha-se a impressão de que ninguém além dele estava se escondendo por trás dela. “Eu leio e me escuto”, uma pessoa me disse certa vez quando eu lhe dei o adesivo na rua. “Isso é exatamente o que eu penso: eu não vou ter uma casa na porra da minha vida.”
Além de muita visibilidade, essa frase conseguiu dar um grande impulso ao V de Vivienda. Com ela foi-se capaz de organizar comícios e manifestações muito maiores. Por mais de um ano, milhares de pessoas gritaram com toda a força de seus pulmões nas praças e ruas de toda a Espanha. Mas tivemos a impressão de que nossos gritos não iam a lugar nenhum. É por isso que decidimos organizar o recorde mundial de pessoas gritando “Eu não vou ter um casa na porra da minha vida”.
Um dia ligamos para o pessoal do Livro dos Recordes, o Guiness Book, e pedimos que registrassem oficialmente nosso recorde em seu famoso livro. Explicamos detalhadamente a ideia, dissemos que a faríamos ao mesmo tempo em várias cidades da Espanha e que tudo seria transmitido em tempo real pela internet. O pessoal do Guiness estava avaliando nossa proposta por algumas semanas e finalmente a rejeitou “porque era muito estranho”. Essas pessoas nos chamavam de estranhos! De qualquer forma, não damos muita importância e fomos em frente com o plano. Fizemos alguns vídeos e os distribuímos na web como um apelo; Também desenhamos o Putómetro⁴, um aplicativo interativo que mede o nível de raiva que alguém sente quando se depara com uma situação concreta. No dia 6 de outubro de 2007, milhares de pessoas se reuniram nas principais praças de várias cidades espanholas e seus gritos atingiram o nível máximo do Putómetro, quebrando assim o primeiro recorde mundial de gente gritando “Não vou ter casa na porra da vida”. Mas nem mesmo isso poderia impedir que a crise econômica atingisse todos os cantos do planeta em pouco tempo.
Foi quando criamos o Enmedio5 . Além de Oriana e eu, que já tínhamos trabalhado juntos desde As Agências, e de Mario Ortega, que esteve nos últimos dias de Yomango, se somaram a essa nova aventura Anja Steidinger, Jesús Cuadra, Daniel Bobadilla, Xavier Artigas, Núria Campabadal, David Proto e Toni Valdés, assim como muitos colaboradores como David Morgado, Elena Fraj, Samuel Esteban, Penélope Thomaidi, Patricia López, Nico Hache o Kevin Buckland.
O nome Enmedio – desse jeito, todo junto– foi uma tentativa de fugir dos nomes que limitam e reduzem a experiência do que fazemos. Refere-se ao fato de valorizarmos nosso trabalho a partir de um lugar estabelecido por nós mesmos, por nossas necessidades e desejos e não por aqueles que nos são dados por instituições culturais ou pelas profissões artísticas. Enmedio significa atuar no terreno que habitamos, tentando abrir caminhos onde antes não havia. Caminhos em qualquer lugar, no meio de tudo.
Festa no INEM
No início, a crise era apenas um estado de espírito. Uma espécie de tristeza social e insegurança existencial que paralisava tudo. Era como se de repente os sonhos representados diariamente pela publicidade tivessem se tornado completamente inatingíveis e as pessoas, frustradas e ressentidas, começassem a sentir medo. Um medo que entrava pelos poros da pele e enchia os ossos de uma fumaça suja.
Nunca acreditamos muito na crise financeira. Para nós, isso sempre foi mais uma ferramenta do governo. Mais do que uma crise, o que estávamos enfrentando era o triunfo do capitalismo em crise, uma forma de governança que garantia a continuidade e a reprodução do lucro, espalhando o medo por toda parte. O medo foi a estratégia simbólica fundamental para o “quietismo” e a submissão de uma população dilacerada em mil pedaços. Isso é o que realmente nos preocupava: que o medo prevalecesse sobre a alegria. Esse era o problema político de primeira ordem para nós e decidimos enfrentá-lo.
Em 30 de abril de 2009, fizemos uma grande festa no escritório de empregos do INEM. A primeira coisa que você precisa fazer para organizar uma festa é escolher bem o local. O INEM parecia-nos ideal, ou existe outro local onde a tristeza e o medo social estão mais presentes do que um posto de trabalho? Desemprego é medo, isolamento e estigmatização, desemprego é a tradução literal de tristeza e depressão social, exatamente o que queríamos combater com nossa festa.
Então nos apresentamos lá, uma manhã, com nosso sistema de som, e o que aconteceu foi incrível. Em menos de cinco minutos de dança e piadas, todos os rostos tristes das pessoas que estavam na fila da paralisação explodiram em gargalhadas. O vídeo que gravamos lá se tornou muito mais famoso do que jamais havíamos imaginado. Hoje tem mais de um milhão de visualizações e tem servido de inspiração para muitas outras festas que, desde então, são realizadas periodicamente em agências de emprego em todo o país.
O capitalismo, para dar medo, insiste na crença de que temos algo a perder. Se a nossa festa no INEM mostrou algo, é que a única coisa que realmente devemos nos preocupar em perder é o prazer e a alegria de estarmos vivos.
Não somos números
Outra expressão que a crise (o capitalismo de crises) adotou desde o início foram os despejos. Nos primeiros três anos da crise, houve mais de 350.000 despejos na Espanha, cerca de 532 por dia, um a cada oito minutos, mais ou menos. É assim que a mídia fala deles, como números. Mas despejos não são números; são pessoas com rosto e olhos.
O projeto “Não somos números” veio da Oficina Ação Fotográfica (TAF!), uma oficina que Oriana Eliçabe leciona há alguns anos no centro do Enmedio, quase que permanentemente. No TAF! dedicamo-nos a investigar as infinitas possibilidades que a fotografia oferece para intervir nos conflitos sociais. O “Não somos números” foi criado em colaboração com a Plataforma de Atingidos por Hipotecas (PAH) e teve sempre como objetivo dar de cara com o problema da habitação: literalmente.
Era feito de três maneiras diferentes. Em primeiro lugar, “Não somos números” era um ponto de encontro para pessoas que estavam prestes a ser despejadas de suas casas. A perda do lar é algo que desestabiliza totalmente uma vida. Um despejo sempre afeta toda a vida familiar, trabalho, saúde. É a dinamite que explode a estabilidade mental de quem sofre. Os participantes da nossa oficina estavam todos em uma situação muito vulnerável. Nessas circunstâncias, a necessidade de apoio torna-se absolutamente essencial. Nossa primeira oficina tentou responder a essa necessidade.
Em segundo lugar, “Não somos números” foi uma oficina de fotografia. Os participantes, todos ameaçados de despejo iminente, aprenderam conosco algumas técnicas básicas de retratos naturais, bem como algum outro método de impressão barato. Quando os retratos ficaram prontos e impressos em tamanho grande, deu-se início à terceira e última parte deste projeto. A parte da intervenção pública.
A intervenção que realizamos com “Não somos números” procurou ligar visualmente todas aquelas pessoas que estavam prestes a perder suas casas com os responsáveis diretos pelo despejo. A própria pessoa retratada foi quem colou sua fotografia na fachada do banco que queria expulsá-lo de sua residência. E ela o fez acompanhada de muitas outras pessoas que estavam na mesma situação.
Esse ato, além de ajudar a identificar os responsáveis por um sistema injusto, deu grande poder aos atingidos. Este ritual repetido inúmeras vezes, além de dar força, dignidade e autoestima aos atingidos, também ajudou muitas pessoas a compreenderem de relance o problema dos despejos e, portanto, apoiar a luta das vítimas. Além disso, a exposição contínua dessas intervenções na imprensa obrigou os bancos a cancelar alguns dos despejos mais iminentes.
“Não somos números” era um ritual coletivo daqueles que nós, humanos, viemos praticando desde o início dos tempos. Um ato de magia que usou (auto) representação para confrontar as poderosas forças que nos derrubaram. Um ato de presença coletiva que através do uso de imagens enfrentou os arautos da morte, sobrevivendo às circunstâncias mais adversas. Algo semelhante ao que os homens das cavernas e mulheres faziam quando, com sangue e cinzas, se representavam dançando com a lança na mão ao redor do fogo para enfrentar os perigos que espreitavam na escuridão mais profunda da noite.
Sim, pode (mas não querem)
Com a Plataforma de Atingidos por Hipoteca (PAH) também realizamos a campanha gráfica “Sim, pode (mas não querem)”. A PAH acabava de apresentar no Congresso dos Deputados uma Iniciativa Legislativa Popular (ILP) que incluía três medidas concretas para garantir o direito à moradia no país: aluguel social, pagamento retroativo e paralisação imediata de todos os despejos.
Ao contrário do que se possa pensar, a maior desvantagem de apresentar um ILP não é o fato de ter que recolher as 500.000 assinaturas que são necessárias (o PAH arrecadou três vezes mais), o difícil mesmo é conseguir que os deputados votem verde e passem no Congresso. A PAH achava que a única maneira de conseguir isso era realmente fazê-los entender as consequências dramáticas que seu voto no vermelho poderia causar. É por isso que a PAH reiteradamente convidou todos para suas assembléias, para explicar pessoalmente a situação dos atingidos, mas, infelizmente, nenhum aceitou esses convites. Assim, o PAH já estava sem ideias quando de repente alguém se lembrou dos escraches argentinos.
Na Argentina, o Escrache é uma manifestação pacífica em que um grupo de pessoas se apresenta na casa ou no local de trabalho de alguém com a intenção de denunciá-lo publicamente, seja por um ato criminoso que cometeu ou para demonstrar sua responsabilidade em algum evento político. Adaptar esta mesma prática para informar os deputados ao vivo sobre a situação de emergência em que milhares de pessoas se encontravam parecia uma boa ideia. Você sabe: se a montanha não vier até mim …
No entanto, ir do “Parem os despejos” para escraches representou um grande salto, não sem seus perigos. Era preciso saber transmitir bem o sentido e as intenções desta proposta; caso contrário, corria-se o risco de serem mal interpretados. É precisamente aqui que entramos em cena.
Realizar uma campanha de escraches não é fácil, você enfrenta uma série de desafios muito difíceis de resolver. Em primeiro lugar, tínhamos que deixar claro que os escraches do PAH, ao invés de apontar alguém pessoalmente, o que eles queriam era informar e transmitir o enorme apoio social que suas propostas receberam. Isso nos obrigou a inventar um dispositivo visual capaz de criar um ambiente amigável que ao mesmo tempo conseguisse mostrar, em um único olhar, toda a esperança contida nas propostas do ILP. Em segundo lugar, estávamos trabalhando com um movimento social (o PAH) que ao longo dos anos havia criado todo um universo visual (a cor verde, o slogan “sim você pode”, etc.) que já existia naquela época no imaginário coletivo, e do qual era impossível nos separar. Finalmente, a campanha teve que funcionar em toda a Espanha, o que nos obrigou a desenhar algo leve e fácil de reproduzir em grande escala.
Por fim, o resultado foram dois botões de papelão, cada um com um metro de diâmetro, um verde e um vermelho. Impresso em verde estava “Sim, pode” e em vermelho, “Mas eles não querem”. Em vez de tentar inventar algo novo, decidimos o contrário: reforçar o que já existia. Esta é uma prática comum em nosso trabalho; para nós a criatividade se encontra ali, nas infinitas combinações oferecidas pelo que existe, e não numa pretensa originalidade que veio de não sei que universo paralelo. Decidimos fazer os círculos de papelão por ser o material mais barato que encontramos. Isso também atende às nossas demandas criativas: as coisas que fazemos devem ser apropriadas por qualquer pessoa sem dificuldade. É por isso que trabalhamos com círculos, porque até um bobão consegue fazer o “O” com um cano e porque, além disso, é uma forma muito semelhante aos botões que os deputados apertam quando votam. É assim que os votos são representados na tela do Congresso: círculos verdes a favor, círculos vermelhos contra.
Por outro lado, como somos da opinião que se algo der certo é melhor não mexer, mantivemos integralmente o “Sim, podemos” do PAH. Tudo o que fizemos foi adicionar o “Mas eles não querem”. Pareceu-nos que assim se representou perfeitamente o conflito enfrentado pela Plataforma dos Atingidos por Hipoteca após mais de dois anos de luta contra os despejos e com uma ILP apresentada no Congresso: existem soluções para o problema da habitação, mas um grupo reduzido de políticos têm o poder de bloqueá-los.
A campanha foi completada com adesivos, também verdes, com a inscrição “Sim, pode” impressos em sua superfície e contendo um resumo das propostas básicas do ILP. Esses adesivos foram elaborados para que as empresas e estabelecimentos que assim o desejassem pudessem mostrar seu apoio à HAP colando-os em suas vitrines. Para facilitar a distribuição de todo este material, idealizamos o «Kit Escrache», um arquivo acessível no site da PAH que incluía todo o necessário para que qualquer pessoa, em casa, pudesse construir os dois botões seguindo algumas instruções simples. Resumindo: duas frases recorrentes, duas formas simples, duas cores básicas, nada que qualquer pessoa possa fazer. Sim, pode!
Campeões do desemprego
Com a crise econômica, veio também a privatização do setor público. Tudo que era público começou a correr o risco de se tornar privado: universidades, hospitais e até monumentos históricos. Em junho de 2013, a Câmara Municipal de Barcelona, presidida pela antiga Convergencia i Unió, alugou, como uma painel publicitário e por uma boa quantia, a estátua de Colombo a duas empresas multinacionais.
Essas duas empresas colocaram uma enorme camisa do Barça na escultura e a colocaram para vender tênis e destinos turísticos de baixo custo. O anúncio foi feito em todo o mundo. Em poucos dias ocupou as principais emissoras de televisão e algumas capas das revistas mais populares. O sucesso deste comercial conseguiu colocar a Espanha no centro das atenções internacionais, ressaltando mais uma vez aquilo pelo que é mais conhecida: suas vitórias esportivas.
A Espanha é campeã mundial em quase tudo: no futebol, no basquete, no GP de motos, isso todos sabem. O que talvez não seja tão conhecido, porque nunca é comentado nos meios de comunicação, é que a Espanha também é a campeã mundial em desemprego. No momento em que realizávamos a nossa ação, havia mais de 6 milhões de desempregados no nosso país, quase metade dos jovens em idade ativa. E isso era algo que merecia um bom anúncio.
Quando uma empresa usa um monumento como a estátua de Colombo de Barcelona para fins comerciais, isso provoca pelo menos duas reações imediatas. Por um lado, acrescenta uma nova concepção ao significado original do monumento, dando-lhe um novo sentido, uma nova interpretação; por outro lado, abre um foco de atenção da mídia sobre ele. A partir desse momento, qualquer outra intervenção realizada no mesmo monumento voltará a causar o mesmo duplo efeito, uma vez que nenhum signo fica completamente fechado. Cada imagem está constantemente aberta a novos significados, desde que se consiga intervir nela.
A primeira coisa que fizemos foi chamar a imprensa e convocá-la ao pé do monumento a Colombo às 12 da manhã, justamente quando havia mais turistas na área. Como a questão da privatização deste monumento já havia causado rios de tinta na imprensa, tudo o que se referia a ele despertou grande interesse. Então, todos os jornalistas para os quais ligamos apareceram na hora certa para o encontro, ansiosos para registrar o que quer que acontecesse ali com suas câmeras. E o que aconteceu foi que de repente apareceu em cena um gigantesco balão amarelo em que se lia a frase: “Espanha campeã do desemprego”, tanto em espanhol como em inglês.
Os jornalistas correram para fotografar a esfera que subia pelo ar até chegar à ponta do dedo de Colombo, compondo uma imagem tão irresistível que nenhum deles resistiu em capturá-la. Foi assim que conseguimos fazer furtivamente o anúncio da alarmante situação social espanhola na imprensa, sem gastar um centavo em publicidade. Se a operação publicitária original, a do jogador de futebol Colombo anunciando roupas esportivas e voos de baixo custo, teve uma grande cobertura da mídia, esta nossa nova intervenção na estátua não ficou longe. A máxima de Roland Barthes foi cumprida mais uma vez: “É sempre mais subversivo alterar um signo do que tentar destruí-lo.”
Refletores contra o mal
Durante o tempo que durou a crise, fizemos de tudo, até viramos super-heróis às vezes. Os Refletores Contra o Mal eram pessoas comuns. Superpoderes, o que se chama de superpoderes, não tínhamos nenhum, não tínhamos sofrido mutação por causa de algum experimento científico estranho e robusto, não voamos, não tínhamos força sobre-humana, a única coisa que tínhamos um pouco fora do comum era um brilhante terno e um par de ferramentas curiosas que desenhamos (com a ajuda do grupo alemão Tools for Action). Essas ferramentas eram o “Raio Reflexivo” e o “Infalível Inflável”, duas coisas muito simples que qualquer pessoa poderia fazer em casa com pouco esforço.
Os Refletores contra o Mal, mais do que um grupo, eram uma técnica criativa que qualquer um podia usar sempre que precisasse, quando não aguentava mais e dizia: “Basta! Já deu”. O Raio Reflexivo é um objeto de prata em forma de raio que serve para refletir a luz do sol e, assim, evitar que a polícia grave as pessoas em uma manifestação com suas câmeras. A segunda ferramenta, o Infalível Inflável, é um cubo prateado muito leve – embora de dimensões gigantescas – capaz de resistir a golpes de intensidade extremamente alta. Ele é projetado para atender a três objetivos. A primeira é apontar o Mal onde quer que se encontre, adotando mil e uma formas diferentes. A segunda, divertir as pessoas quando as manifestações ficam chatas (algo que acontece com bastante frequência). E o terceiro, o principal objetivo para o qual projetamos esta ferramenta, é impedir as ofensivas policiais.
A primeira vez que tentamos foi em Barcelona, durante a greve geral de 2011. A Praça da Catalunha estava cheia de gente usufruindo a greve quando um grupo de policiais de choque chegou, espancando a torto e a direito. Aquela cena de terror nos pegou brincando com nosso Infalível Inflável e não conseguimos pensar em mais nada além de jogá-lo na polícia. Esse foi um verdadeiro Deus Ex Machina. A inesperada presença daquele raro objeto foi como aquele eclipse oportuno que aparece no cinema quando ninguém o espera, permitindo a fuga do herói. Parou completamente os policiais que estavam ali sem saber o que fazer. Primeiro tentaram destruí-lo com golpes, mas quando viram que a coisa não funcionava acabaram jogando-o de volta em nós. Fizemos o mesmo com eles, criando uma espécie de pingue-pongue que transformou aquela cena de terror em uma autêntica cena de quadrinhos. Foi dessa maneira fortuita que descobrimos o potencial antirepressivo do Infalível Inflável. Nesse mesmo dia, de volta ao nosso estúdio, começamos a produzir em massa Infalíveis Infláveis e, pouco depois, já os estávamos testando em manifestações por toda a Europa com resultados sempre excelentes.
Festa Cierra Bankia6
No início de 2012, o Bankia, um dos bancos mais importantes da Espanha, declarou falência. Depois, pede ao governo do país 23 bilhões de euros para poder continuar com sua atividade, e o governo aceita sem pensar duas vezes. Naquela mesma semana, corta 20 bilhões de euros dos orçamentos anuais de Saúde e Educação. Os mesmos políticos que durante anos dirigiram esta entidade e administraram cada uma de suas atividades até causar sua falência, são agora os que decidem, sem consultar ninguém, investir uma imensa quantia de dinheiro público em seu resgate. Foi a gota d ‘água. A partir daquele momento, muita gente começou a entender que o que a mídia chamou de crise econômica foi, na verdade, uma fraude monumental. Mais do que um simples fato econômico, a crise transformou-se em uma técnica política de governo que, longe de implicar um enfraquecimento das políticas neoliberais, como muitos acreditavam, levou ao seu reforço.
Esse reforço veio na forma de planos de austeridade destrutivos e “resgates” bancários. Crise agora significava calar a boca e obedecer a tudo o que eles nos diziam, e não estávamos dispostos a fazer nenhuma das duas coisas. Por isso organizamos a festa surpresa “Cierra Bankia“, para nos livrarmos da raiva que carregávamos ao ouvir a notícia do resgate de Bankia. Foi uma ação que realizamos em duas fases distintas. Em primeiro lugar, redigimos e publicamos um comunicado incentivando todos os clientes deste banco a cancelar suas contas pessoais. “É melhor para Bankia afundar do que para todos nós afundar com ele”, dissemos a eles. Mais tarde, assim que o depoimento começou a ter impacto nas redes sociais e em alguns outros meios de comunicação oficiais, nos aproximamos de um escritório do Bankia e lá ficamos escondidos esperando até que uma garota entrou e cancelou sua conta.
Quando ela fez isso, dezenas de pessoas apareceram de surpresa celebrando sua decisão em grande estilo. Música, champanhe, confete, ninguém nunca tinha feito uma festa como esta dentro de um banco antes. A garota, mais do que espantada, acabou voando porta afora enquanto todas as outras (exceto o diretor da entidade, é claro) cantavam em uníssono “Bankia, cierra Bankia!”. Uma música que compusemos para a ocasião e que acabou se tornando a música oficial das manifestações contra cortes. Lembro que durante as oficinas que organizamos nos dias anteriores a essa ação, todos puderam definir e ensaiar a atuação que fariam no dia da festa. Toda a intervenção no banco foi desenvolvida de acordo com um roteiro pré-definido, embora não inteiramente, visto que a improvisação neste tipo de intervenção desempenha sempre um papel importante.
A repercussão midiática foi realmente surpreendente; Em poucas horas, o vídeo da festa ultrapassou um milhão de curtidas. Com um pouco de criatividade e muita diversão havíamos conseguido criar uma imagem capaz de enfrentar tanto o medo transmitido pela mídia (“não se mexa, poderia ser pior”), quanto a miragem da segurança e a confiança na qual se sustenta qualquer relação que se estabeleça com um banco (“Confiança, garantimos o seu futuro”). De alguma forma, a festa Cierra Bankia conseguiu transformar a raiva popular em uma faísca de diversão, sem reduzir nem um pouco as críticas aos cortes e à privatização do dinheiro público. Descobrir que o protesto social pode ser, mesmo nas piores situações, algo divertido, inspirou muitas pessoas a encerrar suas contas bancárias naquela entidade e a organizar outras festas Cierra Bankia em todos os lugares.
Mundo-valla
Desde a celebração daquela festa até hoje, a lógica da globalização neoliberal, a competição exacerbada, a precarização do emprego e a estagnação preocupante das altas taxas de desemprego só aumentaram o medo. O medo é hoje o astro escuro de uma crise abrangente que nos cerca em todos os quatro lados. É o que tudo arrasta e domina face à extrema incerteza do futuro. O medo, que é mais contagioso que a peste, aos poucos transformou o mundo em um lugar fortificado e cheio de atitudes exclusivas. Chamamos esse mundo de mundo-valla. Uma grande cerca feita de muitas cercas. É um mundo em que se enfraquecem as certezas de velhas ideias, crenças políticas e a possibilidade de um futuro melhor e de uma convivência diversa e plural, cada vez mais se define sob os parâmetros do controle e da segurança. Um mundo em que o tecido social é cada vez mais rompido e a segurança, a vigilância e o controle são proclamados como único sentido. Atualmente, no Enmedio estamos dedicando nossas energias para imaginar formas criativas de enfrentar este sentido sombrio.
Que arte, que ativismo ainda pode resistir ao Mundo-valla? Todas as experiências artísticas, intervenções públicas e processos sociais que temos realizado nos últimos anos são, de alguma forma, tentativas de responder a esta pergunta. E não é fácil. Assim que tentamos respondê-la, muitas outras perguntas aparecem imediatamente. Como ser ativista quando as verdades que mobilizaram a ação social passada caíram e a razão não governa mais a organização da vida? Como e onde agir para parar esta guerra de todos contra todos, esta luta de classes sem classes que nos reduz a uma multidão solitária, amedrontada e disposta a aceitar as disposições mais violentas com naturalidade? Com quem criar alianças, grupos, movimentos, quando nossas identidades estão arruinadas e nossas vidas despedaçadas, um espelho quebrado que constantemente tentamos reconstruir continuamente? Como podemos ainda apostar no social num mundo sem sociedade onde a solidariedade e o apoio mútuo nada mais são do que uma memória guardada no museu das ideias? Como ainda ser um ativista em um mundo desumano?
Tentar responder a essas perguntas nos levou a explorar a vasta difusão dos dispositivos neoliberais. Com o passar dos anos, acabamos classificando-os em dois grandes grupos: “dispositivos de intensificação” e “dispositivos de divisão”. Os primeiros, os de intensificação, referem-se a todos aqueles dispositivos que o poder desdobra com o intuito de intensificar a energia social e capturá-la. Eles assumem a forma de desejos, de impulsos insaciáveis que sempre querem mais, sempre mais. A consequência final de estar constantemente exposto a esses tipos de dispositivos é exaustão, fadiga e raiva. O segundo, os dispositivos de divisão, referem-se a todos aqueles impulsos separatistas que são aplicados hoje em todos os tipos de relações sociais, desde as mais próximas e íntimas até as mais globais. O equilíbrio que sustenta todas essas partes separadas que compõem o social hoje é mantido apenas por meio do uso de controle, vigilância e violência organizada.
O conjunto dessas duas categorias de dispositivos passa a incluir tudo ou quase tudo, do psíquico ao físico, do mental ao material; eles podem ser uma ideia e uma infraestrutura. Juntos, eles formam o mesmo espaço, um espaço que atrai e repele ao mesmo tempo. Este duplo espaço, que é o Mundo-valla, é aquele que nos propusemos enfrentar nos próximos anos. No momento estamos preparando uma publicação e uma série de oficinas onde exploraremos algumas formas possíveis de subvertê-lo, formas de relaxar a relação doente que temos com ele. Você vai conhecer as ações que saem dessas oficinas, com certeza.
Notas:
1 – Traduzindo para algo como: Sabotagem Contra o Capital se Divertindo Pacas
2 – Segundo o dicionário Michaelis mangar é: Escarnecer com aparência de seriedade; caçoar, zombar:
3 – Em português, numa tradução livre, ficaria “M de Moradia”. Porém, optou-se por deixar no sentido original por se tratar de um nome próprio de uma intervenção.
4 – Aqui novamente optamos por não traduzir literalmente, mas dá pra compreender o sentido como um aplicativo para medir o nível de insatisfação, ou nas palavras da ação, o quão puto a pessoa estava.
5 – O autor do artigo sugeriu que mantivéssemos o nome do Coletivo sem tradução. Mas para uma melhor compreensão, se a mesma fosse feita, seria algo parecido como “NoMeio”.
6 – Traduzido para Fecha, Bankia. Optou-se novamente por deixar o título original por se tratar de uma ação do grupo.
Artigo original: