Quase três anos após a instalação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) no Brasil e o início das escavações de um dos períodos mais sombrios da história do país, view a principal conclusão a que se chegou foi que as violações aos direitos humanos foram praticadas de maneira sistemática pela repressão. O relatório final da CNV foi entregue nesta quarta-feira, stuff 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, à presidenta Dilma Rousseff, em cerimônia no Palácio do Planalto, em Brasília.

O relatório enumera as atividades realizadas pela Comissão, descreve os fatos examinados e apresenta as conclusões e recomendações dos integrantes do grupo. Mostra como militares, trabalhadores organizados, camponeses, igrejas cristãs, indígenas, homossexuais e a universidade foram afetados pela ditadura e qual papel esses grupos tiveram na resistência. O documento aponta também “graves violações” contra as mulheres. Revela ainda a vida e as circunstâncias da morte e do desaparecimento de 434 pessoas — 73 nomes a mais do que o último levantamento realizado pelo Estado, em 2007.

Entre as populações vulneráveis, merecem destaque a constatação de violências sofridas por índios e gays, além da dupla perseguição contra religiosos, tanto pelas cúpulas das igrejas quanto, diretamente, pelos militares. Houve violações dos direitos humanos a membros de igrejas cristãs, tanto católicas quanto protestantes. Segundo o levantamento, “as grandes compreensões teológicas e pastorais”, sócio-históricas e políticas, presentes tanto no segmento católico como no protestante, “serviram como base de apoio e colaboração das igrejas com a ditadura militar, estabelecida em 1964”.

As igrejas teriam sido coniventes com a ditadura, apoiadas em um “anticomunismo” e na subserviência aos chefes do Poder Público. Isso teria colaborado, diretamente, para “atitudes de silêncio, omissão e colaboração explícita com o regime, tanto na reprodução da propaganda ideológica de respaldo ao Estado de exceção quanto com denúncias e delações contra membros de seu próprio corpo”, explicita o relatório. Ainda assim, tal complacência não impediu que os próprios membros das igrejas cristãs fossem também perseguidos pela repressão.

Entre os religiosos que mais foram alvos da perseguição do regime estão os defensores de estudantes, camponeses e operários. De acordo com a CNV, o motivo seria o engajamento em movimentos contra a ditadura, “fruto da compreensão religiosa que os impulsionava a relacionar sua fé a ações concretas pela justiça e pelos direitos humanos”.

Omissão e violência aos indígenas

No período compreendido entre 1946 e 1988, a Comissão afirma que é possível identificar dois períodos distintos, em que os povos indígenas sofreram com a “omissão e a violência direta do Estado”. O primeiro se caracterizou pela omissão da União na fiscalização e proteção das terras indígenas, o que favoreceu o interesse privado. Em um segundo momento, depois do Ato Institucional Nº 5, houve liderança da União e as “graves violações de direitos dos índios ficam patentes”, por meio de relatos de torturas, assassinatos e expulsão de indígenas de suas terras.

Além disso, o estudo aponta omissão na área de saúde às comunidades indígenas e favorecimento dos interesses privados em detrimento dos direitos dos povos tradicionais. Durante o período investigado, foi possível estimar pelo menos 8.350 indígenas mortos. O número real, no entanto, segundo a Comissão, “deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito restrita dos povos indígenas afetados foi analisada”.

A Comissão faz 13 recomendações sobre as violações aos direitos indígenas, entre as quais a criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, “visando a aprofundar os casos não detalhados no presente estudo”; pedido público de desculpas do Estado brasileiro aos povos indígenas e regularização das terras indígenas.

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Equipe de pesquisadores entrega volumes do relatório final à presidente Dilma Rousseff em Brasília. Foto: Roberto Stuckert Filho.

Patrulhamento regular contra LGBT

O documento ressalta que a discriminação contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT) não surgiu durante a ditadura, mas que a eliminação de direitos democráticos e de liberdades públicas, desencadeadas pelo golpe de 1964, adiou as possibilidades de constituição de movimentos sociais em defesa deste grupo.

Segundo a Comissão, apesar de não ter havido uma política de Estado formalizada no sentido de “exterminar os homossexuais”, a ideologia utilizada para justificar o golpe, ligada a valores conservadores, era “claramente homofóbica”, relacionando a homossexualidade “às esquerdas e à subversão”, sendo considerada algo “nocivo, perigoso e contrário à família, à moral e aos bons costumes”. Esse tipo de visão teria legitimado a violência direta contra as pessoas LGBT.

A CNV dá o exemplo do padrão de policiamento na cidade de São Paulo. Sob o comando do delegado José Wilson Richetti, as rondas policiais passaram a perseguir grupos vulneráveis e estigmatizados, como os LGBT. Muitas vezes, enquadravam travestis na contravenção penal de “vadiagem”.

O relatório sugere sete recomendações, entre estas a criminalização da homofobia; aprovação de lei garantindo a livre identidade de gênero; pedidos de desculpas oficiais do Estado pelas violências, cassações e expurgos cometidos contra homossexuais em ato público construído juntamente com o movimento LGBT; reparação às pessoas LGBT perseguidas e prejudicadas pelas violências do Estado; e revogação da denominação de “Dr. José Wilson Richetti” dada à Delegacia Seccional de Polícia Centro, em São Paulo.

Números

Tortura era política padrão

De acordo com o relatório, a violência contra presos políticos e opositores ao regime militar não era algo isolado, mas, sim, uma “política de repressão coordenada pelas Forças Armadas”. “A tortura, (…) tornou-se um instrumento de poder e de preservação do governo — com destinação de recursos, organização de centros e de instrumentos e uso de pessoal próprio”, aponta o documento. Segundo o estudo, a tortura era aplicada em todas as vítimas de forma precisa e padronizada, seguindo um mesmo sistema estabelecido para todos os agentes. Para alguns detidos, ainda eram usados métodos mais antigos de violência, com o risco de lhes causarem a morte, ou até mesmo com esse objetivo.

O relatório cita, inclusive, parte do depoimento que a própria presidenta Dilma concedeu à Comissão Estadual de Indenização às Vítimas de Tortura (CEIVT) de Minas Gerais, em 2001. Militante de esquerda, Dilma atuou na guerrilha armada e foi presa e torturada pelo regime militar. “Tinha muito esquema de tortura psicológica, ameaças. […] ‘Você fica aqui pensando, daqui a pouco eu volto e vamos começar uma sessão de tortura’. A pior coisa é esperar por tortura”, relatou Dilma à comissão.

Durante cerimônia de entrega do relatório, a presidenta afirmou que o trabalho do grupo vai permitir que os brasileiros conheçam a história das violações para que elas não se repitam. “Nós, que acreditamos na verdade, esperamos que esse relatório contribua para que fantasmas de um passado doloroso e triste não possam mais se proteger nas sombras do silêncio e da omissão”, destacou.

Muito emocionada, Dilma chorou ao dizer que o país merecia a verdade sobre a ditadura militar. “Sobretudo, merecem a verdade aqueles que perderam familiares e parentes e que continuam sofrendo como se eles morressem de novo e sempre a cada dia”, disse, com a voz embargada.

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Dilma chora, ao mencionar mortes na ditadura, durante cerimônia de entrega do relatório em Brasília. Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil.

Tipos de tortura contra presos políticos

História pode motivar providências

No relatório final, a CNV sugere a criação de um órgão público para dar seguimento às ações da Comissão. Esta também recomenda que os responsáveis por crimes sejam processados. Considerando que as violações e os abusos de hoje são continuidade do que ocorria no período ditatorial, o relatório final da CNV recomenda um conjunto de medidas que consistiriam em uma das maiores reformas na área de segurança pública ocorridas na história do Brasil, englobando medidas como a desmilitarização da Polícia Militar e o fim dos autos de resistência.

Além disso, o Ministério Público Federal (MPF) deve utilizar o relatório para analisar a abertura de novas ações contra militares e ex-agentes da repressão suspeitos de crimes na ditadura. Dos 377 responsáveis por graves violações aos direitos humanos citados pela Comissão, 23 já são réus em dez ações propostas por procuradores da República — que, no entanto, ainda tramitam na Justiça.

Entenda o documento

Criada pela Lei nº 12.528/2011 e instalada em maio de 2012, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi criada para apurar e esclarecer as violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988 (período entre as duas últimas constituições democráticas brasileiras) com o objetivo de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.

Produzido durante dois anos e sete meses, o relatório final da Comissão consolida o trabalho de audiências públicas, depoimentos de militares e civis (vítimas, testemunhas e agentes públicos que teriam participado da repressão) e coleta de documentos referentes ao regime militar, reunido em 4.328 páginas e dividido em três volumes. No total, foram recolhidos 1.120 depoimentos, produzidos 21 laudos periciais e realizadas 80 audiências públicas em 15 estados. No período de funcionamento da Comissão, houve sete diligências em Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo.

[ENTREVISTA] “Relatório é um marco, mas não é um final”

Em entrevista à Adital, o psicólogo Alexandre Mourão, consultor da Comissão de Anistia e membro do coletivo Aparecidos Políticos, destaca que o levantamento faz parte da concretização do tripé memória, verdade e justiça, fundamental para um país em transição da ditadura para a democracia, como é o Brasil. Ele foi um dos presentes na cerimônia de entrega do relatório no Palácio do Planalto.

ADITAL – O que o conteúdo desse relatório final representa para o Brasil?

Alexandre Mourão – Esse relatório é embasado em pesquisas anteriores feitas por familiares de desaparecidos políticos e por comissões especiais. Em nível nacional, representa um novo marco na luta pela justiça, de transição da ditadura para a democracia. Vai embasar novas recomendações ao país, de acordo com preceitos internacionais. Em nível internacional, coloca o Brasil num novo patamar, porque terminou um ciclo e vai abrir a possibilidade da justiça avançar mais. Mas a CNV não é um final; pelo contrário, se deve ir mais além. Agora, é necessário ter um posicionamento.

ADITAL – Que críticas você faria ao relatório?

AM – Familiares dos mortos, dos desaparecidos políticos, não souberam onde estão os corpos de seus familiares. O relatório pode ter os avanços e as recomendações que tem, mas a crítica de boa parte dos familiares é esta: eles não tiveram o direito sagrado de enterrar esses corpos. Então, é uma questão em aberto. É um recomeço, um novo ciclo, uma luta que vai permanecer. Os familiares colocam que não vão parar de buscar por isso. Em nível político, o relatório criou um importante debate, mas minha crítica é que a Comissão da Verdade começou a fazer as audiências e diligências muito no final do processo, apenas no último semestre.

ADITAL – Você afirmou que o relatório é um marco da transição entre a ditadura e a democracia. O país ainda está nesse limbo? A democracia ainda não se consolidou?

AM – Acho que a democracia ainda não se consolidou, porque a discussão é que a sociedade, quando passa por um regime autoritário, por uma ditadura, um regime de exceção, precisa realizar esse tripé de “memória, verdade e justiça”. Um argumento bem prático da continuidade desse período, de resquício da ditadura, são os órgãos de segurança pública e a militarização da polícia. A Polícia é ligada ao Exército. Existem a Lei de Segurança Nacional e as práticas de segurança pública.

Exemplos culturais, simbólicos, são as nomeações de ditadores e torturadores em ruas, instituições, prédios públicos. São mais de 500 escolas com o nome de torturadores. Ainda há pessoas que pedem intervenção militar e parlamentar [deputado federal Jair Bolsonaro, do Estado do Rio Grande do Sul], que pede golpe, faz apologia ao estupro e defende a ditadura militar. Muitos militares permanecem em órgãos públicos, ocupando cargos importantes. Alguns deles possuem relação com grupos de extermínio.

Será, então, que a gente realmente já passou por essa transição democrática? É preciso repensar sobre esses arbítrios para que não ocorram novamente. O relatório é um marco, mas não é um final. Começa agora um novo ciclo, o ciclo da justiça, abrindo a possibilidade de consolidar nossa democracia.

Marcela Belchior
Adital

SERVIÇO

Baixe o relatório completo aqui.

Fonte:

http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&cod=83655

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